Entrevista

Entrevista: Amálio Pinheiro

Abandonar posturas que nos coloquem no centro ou no topo pode ser uma benfeitoria para a vida. O prazer em conviver de Amálio Pinheiro

Especializado em literatura hispano-americana, mestre em Literatura e doutor em Comunicação e Semiótica. Professor, tradutor, pesquisador e escritor, seus trabalhos têm ampliado o tema da mestiçagem: ideia que inclui as trocas étnicas e as ultrapassa, fazendo pensar que não é possível ser um sem ser um pouco do outro. Abandonar posturas que nos coloquem no centro ou no topo pode ser uma benfeitoria para a vida. Se você nunca viveu isso, aqui está um cara que explica algo sobre como é viver assim.

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Gostonomia: Você propõe à sociedade não a aceitação da diferença, mas a assimilação dela.  Poderia falar um pouco sobre isso?
Amálio Pinheiro:
O problema de termos de superar o mero reconhecimento das diferenças tem que ver com o fato de que as diferenças, se são vistas de um ponto de vista isolado, terminam por se tornar identidades, fechadas dentro de si mesmas. Daí que o reconhecimento das diferenças é necessário, mas como uma etapa inicial que se dirige para um momento mais complexo, que é o da articulação dessas diferenças em conjuntos nos quais as mesmas, antes isoladas, agora deverão pertencer a configurações ou tessituras desierarquizadas. Justamente me interesso pelas teorias da mestiçagem porque seriam o lugar da articulação das diferenças. Repare que vivemos em uma época em que muitas pessoas, muitos grupos falam de aceitação das diferenças; usa-se inclusive a palavra tolerância, ou respeito, às diversidades.  Tolerar alguém que é diferente significa não aceitá-lo como outro. Significa situá-lo como diferente: “eu reconheço você como diferente desde que continue assim diferente, essa alteridade afastada”.
 
E a “minha” diferença também corre o risco de se manter íntegra? Ela pode querer se manter íntegra também, como vontade imaginária de uma pretensa unidade abstrata. A “nossa” diferença é sempre, de fato e concretamente, do outro, ainda que não queiramos perceber esse movimento de incessante ir-e-vir. Quando você se afirma como diferente também se isola, podendo fazer parte de um centro autoritário que se mantém como sistema de exclusão . Então, é necessário a gente acentuar mais a idéia de processo articulatório, do que simplesmente “aceitação da diferença”. Além de que a mera aceitação da diferença é uma exigência muito pequena e menor, do ponto de vista do conhecimento. Se politicamente há um momento necessário de se reconhecer algo que anteriormente não era reconhecido, evidentemente que esse reconhecimento, ainda que provisoriamente necessário, só pode ser uma etapa primária dentro dos processos tradutórios eu-outro.  O que nós temos que examinar é em que medida, através de gradações e mediações, o diferente faz parte núcleo do outro e vice-versa. Talvez devêssemos inventar palavras-conceito como, por exemplo, “eutro” ou “outreu”.
 
Por vezes me parece que boa parte das pessoas vivem as ideias da tradução e da mestiçagem de maneira negligente, inconsciente e até com certo repúdio. Você concorda com isso? Concordo. Eu diria mais, as pessoas, nesse caso, não vivem a tradução e a mestiçagem, porque para vivenciar isso é necessário participar desse processo articulatório que atravessa as fronteiras dos códigos, linguagens e séries, que interliga as diferenças e heterogeneidades e incrusta o eu no outro. O processo tradutório não é apenas teórico, é prática da experiência sensível cotidiana dentro do enorme laboratório experimental da cultura. Faz parte da experiência física do cotidiano. Não basta você dizer que aceita o outro, dizer que aceita o outro é uma frase vazia. Você só comprova que vai além disso na prática cotidiana, colocando em ação  articulações de alteridades.
 
E o que falta para as pessoas entenderem que é possível viver dessa maneira? Têm que superar as suas próprias barreiras mentais, que as fazem permanecer dentro de sistemas alternativos, que obrigam à escolha de uma coisa ou outra; são sistemas que pertencem ao que se chama de lógica binária. A maioria dos seres humanos vive dentro de esquemas ideológicos que os aprisionam: a família, a escola, os grupos sociais, as ONGs etc; aderem a compromissos partidários, éticos, que as tornam as vezes impermeáveis a um outro tipo de lógica, aquela da inclusão mestiça das inúmeras alteridades num conjunto complexo móvel em vaivém. Por isso é interessante ver que os processos culturais se dão independentes dos agentes ou dos titulares. Muitas vezes as pessoas praticam essas articulações da mestiçagem, que superam as fronteiras chamadas identitárias, sem saber na verdade que o fazem; quando indagadas a respeito, reafirmam um território fácil de identidade (grupo, partido, raça etc). Porque uma coisa são as práticas vivas da cultura, outra as coisas que a pessoa fala integrada aos grupos sociais. Nem todo mundo sabe formular teoricamente as suas práticas. Falar do que se faz não é simples: uma pessoa,em sua fala, voltada para si e seu pretenso centro, tende a excluir as contribuições do alheio, essa porção de outros componentes do que somos.
 
Numa sociedade assim, você passa mais tempo na identidade ou na oposição? A oposição é muito parecida com a identidade. Marx chamava isso de negação determinada: quem nega de maneira ferrenha alguém ou alguma coisa fica parecido com aquilo que nega. Então, a atitude mais interessante é aquela de se procurar o espaço entre, onde você incorpore as peculiaridades dos dois lados. Sem ser nenhum desses lados, inteiramente,  sendo os dois. Aquela frase de um cacique terena é muito boa: “eu posso ser você sem deixar de ser eu”.
 
Você consegue viver a vida de maneira mestiça? Estou sempre me esforçando para isso.
 
Onde está a mestiçagem na sua experiência pessoal? A mestiçagem está na capacidade de incorporar o outro nas mais diversas situações, por meio dos mais variados procedimentos e sintaxes. E de reconhecer a presença do outro, nas mais diversas situações. Não se trata de outro que você descobre e coloca num nicho, o endeusa. Trata-se de um outro para ser comido e digerido de maneira plural. Porque a mestiçagem é sempre falível, inacabada e móvel. Não é uma inteireza que se conquista. Ela se dá como um processo interminável, por isso é incômoda. Não admite um fim, uma vitória, um começo, é um encadeamento de alteridades. Na América Latina, a mestiçagem é, em muitos e radicais casos, levada a cabo por uma atitude barroca nas linguagens e na vida, desde o descobrimento.
 
 
Você poderia dar um exemplo prático e pessoal disso? Sim. Eu diria que o maior exemplo de como funciona a mestiçagem na vida prática, para mim, tem que ver com o fato de eu ter aprendido que o conhecimento vem de qualquer pessoa, e de qualquer lugar da cultura. Aprendi muito mais com pessoas simples, da rua, com pessoas que seriam socialmente desprezadas, do que com professores e pessoas tituladas. Pessoas ditas menores, homens e mulheres, foram aquelas que me ensinaram sobre conduta, sobre comportamento e mesmo sobre conhecimento. Existe uma forma de conhecimento não oficial que está nas cantigas de roda, nos bailes de periferia, no modo como as pessoas se vestem, nas conversas de rua, que compõe um grande tecido de saberes, que são, realmente, o que importa. Então a gente aprende a ver o conhecimento, dito consagrado, apenas como mais uma possibilidade de conhecimento: o conhecimento proveniente de grandes escritores, da universidade, da chamada alta ciência etc.
 
Eu tenho a impressão de até agora ter falado sobre gosto com você, o gosto como capacidade de apreender aquilo que se experimenta, para somente mais tarde determinar-se como bom ou ruim, com ou sem culpa. Você sente que o modo como vivemos hoje, em sociedade ou individualmente, tem a ver com o modo como gostamos das pessoas e das coisas? Sim, tem que ver, sim. Porque são processos de abertura e de fechamento que se dão de maneira muito complexa. Não há dúvida que existem tendências gerais da moda, da mídia e do mundo intelectual da classe média, que tendem a formar um tipo de gosto que se afasta dos conhecimentos mestiços plurais. Então, isso de alguma maneira pode influenciar… quem é mais influenciável, mais adaptável as opiniões de superfície…
 
Se há um fechamento, há um defeito nesta apreensão apreciativa, nesta experimentação. Ela não será apreendida em sua grandeza, certo? É, porque a pessoa está de alguma maneira pressionada de acordo com modos de constituição do gosto que deveriam ser tidos como mais consideráveis.
 
Amálio Pinheiro@gostonomia.com.br
 
Uma manipulação? Sim, é uma forma de manipulação. Uma manipulação cognitiva. Por outro lado, existem as experiências sensíveis. Um estudo poderia mostrar até que ponto a manipulação cognitiva, que tem que ver com a obra de persuasão, pode invadir a experiência sensível.
 
O gosto manipulado seria uma tradução? Dificilmente, porque o gosto manipulado tende a participar de uma norma geral do gosto. A tradução é sempre relação entre alteridades, entre um texto de chegada e outro de partida.
 
Mas quando entramos no jogo da manipulação cognitiva do gosto, não fazemos a tradução do gosto do manipulador para obtermos algum prazer nesta participação? Toda a tradução inclui ganhos e perdas. Sempre que você vai traduzir o gosto do manipulador para que sirva ao gosto do manipulado, há perdas naquilo que o gosto do manipulador pretendia, porque ele é invadido pelo gosto do manipulado e se cria uma outra coisa que não é nenhuma dessas duas. Se for um bom tradutor, senão, não haverá tradução, haverá mera cópia, esmagadora, do gosto manipulador. A tradução sempre implica num trânsito, em que o texto de partida, gosto do manipulador, se perde em favor do gosto de chegada. Um dos exemplos nossos mais caros: os jesuítas, quando na América Latina, para poder ensinar o mistério da Santíssima Trindade, ou seja, para ensinar as concepções religiosas dos manipuladores, a fim de dominar os índios, tinham que aprender as línguas nativas. Quando as aprendiam, sem o saberem, não estavam mais atuando no plano dos manipuladores, mas naquele dos manipulados.  Junto às enormes vilezas que a religião católica praticou na América Latina, houve a presença de inúmeros padres que assimilaram as culturas indígenas. Por isso é um equívoco você apenas denunciar a vileza. Quando só denuncia o ato de manipulação, que deve ser denunciado, porém é muito fácil de ser visto, e não mostra até que ponto travou-se uma relação interessante tradutória, entre manipuladores e manipulados, deixa de mostrar que no processo de tradução quem manipula perde muito das suas propostas em favor do manipulado, sendo deglutido pelo espaço, pela garganta do manipulado. A dualidade manipulador/manipulado já não explica o fenômeno.
 
É possível traduzir os gostos de outro indivíduo em prol de uma vida mais prazerosa em conjunto? Sim. Claro isso sempre é possível através das operações tradutórias. A América Latina foi feita de operações tradutórias. Mas como todo processo tradutório é um processo rico e difícil, não acontece de forma sempre absolutamente benfazeja, em águas tranquilas.  A todo momento reaparecem quistos revanchistas, incapacidades de leitura desse processo, em que a ingenuidade, a ignorância e o autoritarismo aparecem interligados.
 
O ato de traduzir não seria uma atitude política ou cínica, que serviria para não desagradar nem a “mim” nem a “você”? As oposições dizem: o que eu faço é bom, o que você faz é ruim. Quando considera que a cultura do outro não é boa, termina por considerar o outro como não-cultura. Quando isso acontece, você pode exterminar o outro, em ultimo caso você pode não o considerar como gente. A tradução, ao incorporar o outro em você mesmo, obriga a perceber a articulação entre os dois. Mas ela nunca é um movimento de pacificação, é sempre um movimento de instauração da crise. Porque você coloca o outro dentro de você e ele não se amansa, simplesmente age dentro de você. Traduzir é lidar com a fronteira e a crise.  Existe para mostrar o conflito que estava sendo evitado. Isso vale para todos os processos de linguagem em que estamos imersos.
 
A desconsideração do outro me parece uma prática comum de autoritarismo: neste sentido, você acredita na existência de uma sociedade não-autoritária? O autoritarismo é um movimento, intencional ou não, de não reconhecimento da presença do outro. Você age como se o outro não estivesse presente nas coisas que faz. Todos querem assinar alguma autoria. É muito difícil que as pessoas deixem de ser autoritárias por completo. Não há nenhuma teoria que possa ter visto qualquer melhora comportamental desde as mais primórdias eras. O homem nascido agora não é, como caráter, mais tolerante, mais humano do que os primeiros homo sapiens, não há nenhuma indicação disso. Esse gesto de superioridade em relação ao outro, tendência a demonstrar superioridade de classe, cor, etc., não há como possa ser erradicado. Há sempre esses núcleos refratários à mestiçagem. As próprias pessoas que praticam a mestiçagem são passíveis de um orgulho que as façam excluir quem não a pratica. É um risco, porque na verdade não há uma oposição entre o mundo da crise da mestiçagem e o mundo totalitário absoluto. Eles estão um dentro do outro. Não é a denúncia individual do preconceito, que vale apenas; importa mais para que lado o processo está se encaminhando. O que interessa é acelerar o processo da mestiçagem, o que não é fácil, porque as pessoas olham mais para as posturas individuais do que para o processo.
 
É possível ser sem uma postura individualista, totalitária e, portanto, opositiva? É possível, mas é sempre um devir, é sempre algo que está em andamento. E nós temos que privilegiar o andamento. O que não quer dizer que não se possa ou deva ter atitudes de oposição as mais diversas, nos casos mais variados. Porém, se há humor não há oposição, porque o humor é sempre inclusivo e relacional, bitextual. O riso não é moralista, não é politicamente correto. Todas as sociedades politonais, que compõem vozes diversas, são sociedades do humor. Riso, ritmo, jogo e erotismo caminham juntos. Sociedades totalitárias não riem, como já mostrou Bahktin.
 
O que, nos outros, realmente incomoda você? Não me deixarem comê-los. Quando a pessoa se aferra integramente na sua alteridade, isso me incomoda. Durante um certo tempo, depois me afasto, por consideração ao outro. Porque o outro não deve ser respeitado, deve ser incorporado. Mas, se alguém se aferra em uma identidade, exclusiva e separada, eu só posso tolerar.
 
O que te causa prazer no contato com os outros? A troca, tradução de corpos e coisas.
 
Qual seria a experiência do indivíduo na troca consigo mesmo? O indivíduo troca informação com estes vários outros, que tem dentro de si. A gente tem um roteiro frágil do que a gente é. Talvez a gente supere a loucura colocando todos estes outros que nos pertencem em contato. A esquizofrenia, justamente, é a desagregação dessas alteridades, e a pessoa vive uma ou outra, alternativamente. Acho que o caboclo pode ficar saudável na medida em que interliga esses outros. Isso não tem nada a ver com a adaptabilidade social, isso é outra coisa. Estou falando de a gente ter, de fato, vários outros dentro da gente. Uma pessoa mais mental, outra mais sexual, outra mais dada a aventura; isso tudo é difícil de colocar em sintonia. Todas as pessoas razoavelmente ricas e complexas têm tudo isso junto. As pessoas mais normativas, ideologicamente simplórias, se orgulham de ter sempre uma conduta para todas as situações. No entanto, vivemos, na América Latina, numa sociedade barroquizante em que a tendência mais forte é a troca, a tradução, e não a identidade. A gente aprende a por em movimento esses elementos da troca, e a dar um roteiro para esses vários outros que existem dentro de todos. É uma troca externa, com e para o lado de fora, que alimenta também os processos internos. Sempre algo difícil, em conflito, em gradações, inacabado, sem perdedor ou ganhador. Em constante crise, que não se confunde com uma crise que gere angústia ou depressão. Este é um movimento possível do conhecimento. Crise, tradução e alegria.
 
E quem é você na prática de toda essa teoria? Eu sou uma pequena ferramenta dentro de um âmbito localizado, ínfimo, fazendo uma parte ínfima do que posso fazer. O que interessa é esse enorme processo em andamento. Eu só faço a minha parte, na medida do possível, em todas as atitudes, com muitos erros, idas e vindas… é assim. ▒

Silvia Regina Guimarães é doutora em Comunicação e Semiótica e editora de Gostonomia.

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4 comentários

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