Editorial

Posicionamentos, crises e o gosto em viver


Parte do gosto em viver se dá na dignidade consolidada na vida. Viver sem dignidade significaria, decerto, sobreviver. E sobreviver não é gostoso.
A sobrevivência se conecta à ideia do drible das dificuldades, do andar na corda bamba, do descobrir um santo para cobrir outro. E quem passa por isso diariamente, não encontra o gosto nas coisas nem nas pessoas, misturadas, cercadas ou contidas por essa limitação.
Uma crise econômica, social e política, como a que vivemos no Brasil de agora, demonstra, na verdade, uma crise ética e moral. Não somente dos gestores da nação, mas de quem os colocou lá. E ainda que estejamos simplificando a coisa toda, como desconsiderando a opinião formada sem o raciocínio crítico de quem não consegue formá-la por conta própria, sabe-se que a deformação do caráter dos formadores de opinião é um fato que conta muito na disseminação dos discursos consumidos. Por exemplo, nos tempos atuais, o termo “mentira” deixou de ser usado para inúmeras vezes ser substituído pelo termo “falsa verdade”. Essa mudança faz diferença à medida que transforma a percepção da “mentira” em coisa mais amena. E amenizar uma mentira é, inúmeras vezes, dar permissão para que verdade não prevaleça.
Mas, para pensarmos o gosto em viver é preciso enxergar a realidade e dialogar com ela. Catar comida no lixo, sejam cestos ou caminhões, não é normal, assim como não é normal aceitar a violência contra mulheres, LGBTQIA+ e negros, por exemplo, sejam eles indígenas ou descendentes aparentes dos povos pretos africanos, pois no Brasil, todos somos um pouco de tudo. Normalizar uma situação como a fome que se resolve no que foi descartado é mais um rito da violência, uma praticada contra aqueles que podem menos, numa medição de força aquisitiva. A prática da violência contra o mais pobre é costumeiramente normalizada e aceita, pode ser verificada em crimes cometidos sem o “sujar” das mãos, como por exemplo, o desvio de dinheiro de respiradores, o não investimento imediato em vacinas em meio a uma pandemia e, de volta ao início do parágrafo, na inação diante da fome de gente que não consegue se manter sem trabalho na sociedade organizada tal como está.


Parametrizar a verdade é fundamental numa sociedade que se pretende democrática. Falar em democracia é entender que o lado certo é o lado que vislumbra a necessidade do outro. E necessidade não é luxo. Ter a necessidade sanada é o básico, ou seja, o fundamental para que cada um tenha, como ponto de partida, um lugar de imparcial igualdade de direitos.
Pensar a equidade é pensar que todos ao nascer possam ter o básico resolvido, ou seja, direitos fundamentais garantidos. E, perceptivelmente, isso vai da lógica dos afetos positivos garantidos por uma família que dá à luz a uma nova geração por vontade e não por acidente, até a garantia de que essa estrutura familiar se mantenha sob um teto qualificadamente construído, comida boa na mesa, segurança de que sua existência não será interrompida nos caminhos da vida sob a justificativa do preconceito ou da forte emoção, durante o desenvolvimento do indivíduo e em sua vida adulta.
Oportunidades de evolução na jornada da perspectiva humana também fazem parte desse pensamento sobre a equidade. Então, a garantia de estudos e saúde devem entrar nessa conta do básico subsidiado como parte do direito à vida. Nasceu humano, recebe um pacote de benefícios por ser pertencente à excelentíssima espécie, tendo, é claro, respeitado o seu direito a descobrir-se “outro” diferente daquele que os outros percebem.
É na descoberta de si que reside o gosto que Gostonomia visa amplificar. E a gente só pode se descobrir se puder não se preocupar tanto com o direito que a gente tem de estar aqui.
É notável a quantidade cada vez maior de pessoas que, por cansarem do debate e dos efeitos da polarização entre o certo e o errado, dizem não gostar de política. Se faz parte da natureza humana ser empático, não é humano disseminar mentiras como se fossem verdades, rir de piadas feitas com desrespeito pelo outro e sua condição de quem passa por um tipo qualquer de agrura ou, ainda, normalizar o mal-estar alheio, esquecendo que poderia ser o “si mesmo” e não a “alteridade” na posição desfavorável. Ser crítico é fazer política. E fazer política é assumir posições.

Obrigada por estar aqui e pensar junto conosco o que vale a pena viver.

Silvia Regina Guimarães
Editora de Gostonomia

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